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LIVRO

Salman Rushdie lança livro infanto-juvenil
11.08. 2010
"Luka e o Fogo da Vida", o novo livro do escritor indiano, , está carregado de "amor em estado puro". Chega a Portugal em novembro

O pai, o escritor, o filho caminha lento, equilibrando-se esquerda-direita. Enrubesce do couro cabeludo às mãos quando fica furioso. Falar de religião e política deixam-no irascível. E se o tema Irã vier à tona o escritor indiano Salman Rushdie fervilhará. Primeiro em silêncio, depois retumbante.

O governo iraniano de Ayatollah Khomeini decretou guerra religiosa contra ele (fatwa), em 89, incitando o povo a matá-lo. "Os Versículos Satânicos" foram a espoleta. A sentença de morte empurrou-o para o exílio, ao mesmo tempo que as suas ideias corriam, denunciadoras, um pedaço de mundo.

Como pode um homem condenado à morte escrever leve para o público infanto-juvenil? Através da "fantasia", a alquimia dos seus livros.

Vai buscá-la ao imaginário da sua Índia natal, de onde se distanciou para viver no Reino Unido, o seu espaço de liberdade. Talvez por isso agora esteja mais preparado para escrever um livro sobre fatwa.

Talvez. "Sempre soube que um dia teria de escrever sobre o assunto", disse na conferência de imprensa na última Festa Literária Internacional de Paraty, FLIP, onde lançou, mundialmente, "Luka e o Fogo da Vida".

Rushdie, de 63 anos, usa um azul-marinho recorrente na roupa como forma de passar despercebido. E, sempre que se senta, pousa as mãos nas coxas (o silêncio primeiro). Depois, quando começa a falar, mexe-as para complementar o discurso inflamado, vibrante.

Rushdie, o pai, usa óculos; Rushdie, o escritor, tira-os para ler em voz alta um excerto do último livro que escolheu para a mesa da FLIP. Mas antes chamou ao palco o filho. "Sem ele não haveria livro", enfatizou.

Uma relação umbilical que o salva das agruras da vida. Tal como Luka salva o pai no livro de Rushdie. "Os nossos filhos são uma salvação", afirmou. Ele tem dois. E "é muito mais interessante um pai ser salvo pelo filho".

Não há diferença então, aqui, entre o Rushdie-pai e o Rushdie-escritor. E o Luka do livro é uma espécie de alter ego do pré-adolescente Rushdie, Milan, de 12 anos. Se não fosse, a primeira página do novo livro deixava isso claro, pela ênfase das letras iniciais de um poema: "Mágicas terras em qualquer direcção,/ Internas, externas, debaixo do chão./Lá, mundos de espelho sempre existirão./As suas histórias revelam esta verdade: Nada, só amor faz da magia realidade."

Luka, Fogo de Vida, Fantasia "Temos de imaginar as coisas antes de elas estarem no mundo", disse, na FLIP, o vencedor do Booker Prize com o romance "Os Filhos da Meia-noite". "Luka e o Fogo da Vida", que retoma os personagens de "Harum e o Mar de Histórias" - publicado em 90 - é "pura imaginação, sorvida das perguntas e inquietações" de Milan. Resgata a capacidade de transformar o mundo imaginado em realidade.

"Se formos analisar as principais histórias infantis, como a de Peter Pan, concluímos que foram escritas para crianças especiais". O mundo "mágico" é o que vem da imaginação delas.

Desfazemos, no entanto, um possível equívoco: este não é "apenas" um livro infanto-juvenil. É uma lição sobre o amor abnegado e sobre o desejo de explorar esse Amor-estado-puro. Para falar dele vai
buscar inspiração à sua Índia - de onde resgata a cultura oral, as mitologias e as alegorias que obrigam a uma recorrente viagem mental, na ideia de que tudo o que desejamos de bom e de mau pode sempre voltar para nós. Efeito boomerang. Como o jovem Luka.

Ele roga uma maldição no circo da cidade que visita, onde os animais são maltratados. O circo arde. E o dono, Capitão Aag, enfeitiça o pai de Luka, mergulhando-o num sono de Cinderela, até que a morte venha. A magia só pode ser desfeita se ele roubar o Fogo da Vida no cume da montanha.

O périplo desse "realismo mágico" tem deuses greco-romanos, aztecas, hindus, nórdicos, Disney e mitologia moderna, como os filmes do "Regresso ao Futuro". Um caldeirão de referências num mundo imaginado, mas que podia ser aqui e agora. Com a salvaguarda: só os filhos são capazes de empreender tamanho périplo, em estado puro, pelo Fogo da Vida.
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