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PRIMEIRO MUNDO

Escravas sexuais
Justiça acusa clãs ciganos de
explorar portuguesas

por Augusto Freitas de Sousa
31.08.2010

O processo com mais de 50 arguidos está pronto para julgamento. Os detidos em prisão preventiva foram, entretanto, libertados

J. e A. (que nunca chegou a ser localizada pelas autoridades) foram transportadas de Portugal para as quintas - fincas, em castelhano - em Espanha. Ficaram sob controlo das arguidas I. Carromão e V. Carromão, do clã Carromão. As mulheres eram obrigadas a manter relações sexuais com os trabalhadores, bem como com o homem que controlava o esquema de trabalho dos portugueses em Espanha.

O relato de oito anos de escravidão sexual faz parte de um processo que levou à acusação de 58 arguidos por escravidão, sequestro, violação, coacção, ofensas corporais e detenção de armas proibidas. A Polícia Judiciária (PJ) investigou e o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto acusou membros de dez clãs ou grupos de famílias ciganas que se dedicavam, segundo a acusação a que o i teve acesso, a angariar trabalhadores em Portugal para trabalhar em fincas e bodegas espanholas.

Eram mantidos em cativeiro, maltratados e ameaçados de morte como foi o caso, revela o DIAP, de J., aliciada por F. Santos e I. Carromão. A investigação relata que em Maio de 1997 os arguidos propuseram-lhe trabalho em Espanha por três meses e um vencimento diário de 5 mil pesetas (cerca de 50 euros) mais alojamento e alimentação. J., desempregada na altura, aceitou a benesse que parecia vir em boa hora.

Ainda em Portugal, J. quis avisar a mãe da partida, mas já não conseguiu que a libertassem. Ficou dois dias na residência dos arguidos, retiraram-lhe a documentação e ameaçaram-na que nunca mais veria a família. Logo na primeira noite, I. Carromão encarregou-se de deixar um aviso a J.: "O meu marido vai ter contigo ao quarto, faz o que ele quer se não vais ter problemas." A acusação refere que acabou por ter relações sexuais com o suspeito.

Dois dias depois arrancaram para Lucena de Jalon, Saragoça. J. ficou inicialmente numa barraca e, depois, mudaram-na para um armazém numa zona isolada perto de Jalon. J. e A. trabalhavam todos os dias da semana do nascer ao pôr do Sol. Quando chegavam ao armazém eram obrigadas a limpar as instalações. Segundo a investigação, J. nunca saiu sozinha nem lhe foi permitido qualquer contacto com a família.

A PJ apurou que durante os oito anos que J. esteve em Espanha J. foi obrigada a ter "relações sexuais, coito vaginal", com os trabalhadores e com o suspeito F. Santos, sob ameaça de arma de fogo e agressões. Nunca recebeu salário, nem dinheiro e sempre que se queixava era vítima de agressões.

Tentou fugir pelo menos três vezes na companhia de A. S. - que se tornou seu companheiro -, mas foram sempre apanhados. A acusação refere que a zona era tão isolada que os arguidos, de automóvel, facilmente os capturavam. Seguiam--se os castigos e a violência.

Finalmente a 16 de Outubro de 2005, J. e A. S. conseguiram fugir para Portugal. Em Maio do ano seguinte estavam já a residir em Macedo de Cavaleiros quando F. Santos, mais três arguidos no processo e ainda familiares entraram na residência do casal e tentaram levá-los para um automóvel que os esperava. Só não conseguiram porque o proprietário da casa conseguiu protegê-los.

Mais uma vez foram obrigados a fugir para Ribeira de Pena, mas em Outubro de 2006, quando J. e A. S. caminhavam na estrada perceberam que uma carrinha semelhante à que conheciam de Espanha abrandou. Era um dos suspeitos, B. Assis. O automóvel parou e ouviu-se: "Vamos embora, entra na carrinha." Mas conseguiram escapar porque J. fugiu aos gritos e apareceram populares que os ajudaram.

As histórias são contadas pela acusação num processo que identifica, pelo menos, 45 casos, uns mais duros que outros, de portugueses, quase todos oriundos de meios rurais, alguns mesmo sem conhecimentos suficientes para ler e outros com atrasos mentais significativos.

Segundo o despacho de acusação, os dez clãs de famílias de etnia cigana - clã Carromão, clã Bragança, clã de Celorico da Beira, clã Felgar, clã de Belmonte, clã de Mirandela, clã de Vila Flor, clã de Sambade, clã de Alfândega e clã Bimba - aproveitavam os laços familiares entre eles para transportar os escravos portugueses, para os alojar e para toda a logística desde o aliciamento à estadia em Espanha.

Em quase todos os casos, as vítimas tentaram fugir, mas a PJ refere que quase sempre eram apanhadas e ameaçadas de morte. Em alguns casos em que houve intervenção da Guardia Civil espanhola, algumas vítimas eram mesmo ameaçadas sem os agentes perceberem, por muitas vezes serem instigadas a mentir aos militares espanhóis.
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